12/04/2016
Opinião - Quebra de sigilo: entre retórica e racionalidade jurídica

Opinião - Quebra de sigilo: entre retórica e racionalidade jurídica

11 de abril de 2016, 8h57

Por Marina Coelho Araújo


Artigo produzido por especialistas do Insper. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Em tempos de paixões, os movimentos da justiça brasileira devem seguir a técnica e racionalidade para que possam garantir os avanços consolidados ao longo da história da humanidade. A legalidade e o respeito às normas constitucionais, por certo, não resolvem todos os problemas sociais relacionados à convivência humana, mas devem minimizar e solucionar conflitos de forma racional.

No presente texto, pretende-se analisar alguns dos argumentos trazidos em decisão recente do Supremo Tribunal Federal (RE 601.314). Decidiu-se, naquela ocasião, pela constitucionalidade de norma aposta na Lei Complementar 105/2001, artigo 6º, no sentido de que as autoridades e agentes fiscais tributários, sejam federais, estaduais, ou municipais, quando houver procedimento fiscal instaurado, poderão acessar todos os documentos e registros em instituições financeiras, em nome dos contribuintes perante os órgãos fiscalizatórios, sem necessidade de controle jurisdicional.

Significa, pois, a convalidação dos argumentos do Fisco nacional no sentido de que poderá requisitar informações das instituições financeiras a respeito dos contribuintes, sem decisão judicial, bastando a instauração de procedimento administrativo.

O principal argumento da corte suprema brasileira levou em consideração a tese de que a previsão da Lei Complementar 105 não trata de quebra de sigilo bancário, mas sim transferência de sigilo, ou seja, passa-se da instituição financeira ao órgão público — Receita Federal — a prerrogativa de ter acesso aos dados financeiros do cidadão. O Fisco continuaria, portanto, guardião do sigilo, mas já com as informações em mãos, podendo utilizá-las na medida em que entender necessário para evitar a sonegação de tributos ao Estado.

Durante o julgamento, em seus votos, alguns dos ministros tentaram estabelecer critérios para que se garantisse a transferência do sigilo, sem que este fosse violado. Neste sentido, o ministro Dias Toffoli, apontou garantias objetivas a assegurar que os atos do Fisco não a divulgação ampla dos referidos dados bancários, tais como existência de sistemas seguros para armazená-los, submissão do pedido a um superior hierárquico, entre outras.

Francamente, e com o devido respeito, a fundamentação é absolutamente retórica, utilitarista, e violadora das normas constitucionais de proteção da esfera privada do indivíduo. Isto porque o Fisco é parte de ações futuras contra o contribuinte, e pode, com as informações entregues pelas instituições financeiras, desfrutar de posição privilegiada e acessar toda a vida do cidadão. A fiscalização passa a ser, na prática, ininterrupta.

Basta dizer que nos dias de hoje, com acesso aos dados de cartão de crédito e conta bancaria, é possível fazer o mapeamento de toda a vida do cidadão, inclusive saber onde se encontra e o que faz em determinado lugar. A intimidade fica, assim, devassada. Entender que esta devassa pode ser realizada por qualquer departamento da Receita Federal, estadual ou municipal é encerrar a proteção da esfera privada do cidadão em face do poder estatal.

E mais, pergunta-se: se o Fisco, com acesso a estes dados, percebe movimentação que pode caracterizar ilícito penal, é possível que ele entregue as informações diretamente ao Ministério Público ou à autoridade policial competente? Sem decisão judicial? Essa transferência estaria revestida de legalidade?

Considerando o principal argumento dos ministros do Supremo Tribunal Federal, de que a entrega de informações ao Fisco pelas instituições financeiras seria mera transferência de titularidade no sigilo, entende-se que haveria, neste sentido, necessidade de se pleitear medida judicial para quebra de sigilo quando o motivo envolver medida criminal. Se é uma mera transferência de sigilo bancário ao Fisco, não poderia este compartilhar a prova com outros órgãos estatais, sem decisão judicial.

Contudo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ao tratar do tema, fundamentou sua posição pela necessidade de ação eficaz do Estado no combate à corrupção, lavagem de dinheiro e terrorismo. Ou seja, fundamentou sua decisão na necessidade de prevenção de crimes.

Claro que a prevenção à criminalidade e a segurança nacional são extremamente relevantes, mas a retórica esconde, neste sentido, o fato de que se houver suspeita de corrupção e lavagem de dinheiro, ou outro crime qualquer, haverá, pois, indícios para que o Judiciário justifique e decida pela quebra de sigilo bancário dos cidadãos. A Receita Federal não precisaria fazer este tipo de investigação sem o controle do Judiciário.

Mitiga-se, pois, a necessidade de decisão judicial para quebra de sigilo bancário autorizando-o por vias transversas. A Receita tendo acesso aos dados, entregaria-os às autoridades policiais, intentando revestir este procedimento de legalidade.

Pretende-se fazer uma fusão como se ambos os sigilos — fiscal e bancário — fossem coincidentes.

O ministro Gilmar Mendes chegou a comparar, durante o julgamento, a revista de bagagens em aeroportos com a quebra de sigilo bancário por agentes fiscais e sem decisão judicial. Alegou-se que ninguém reclamava da vistoria de bagagens, porque reclamar da quebra de sigilo bancário? Ora, a diferença entre uma e outra parece falar alto, sem que sejam necessárias grandes explicações: o procedimento de verificações em aeroportos é determinado e limitado a bagagens que se colocam em frente às autoridades naquele dia, naquele vôo, naquele momento, com anuência prévia dos próprios passageiros. Está bem distante de se acessar informações da vida do indivíduo por meio de informações financeiras.

Os tentáculos do Estado sobre o cidadão só aumentam. Perde-se conquistas iluministas importantes no sentido de limitar o poder estatal e, acima de tudo, guardar esfera privada importante sem qualquer ingerência do poder público.

A frase do decano Celso de Mello em sua manifestação sobre o tema resume a racionalidade que deve preencher as decisões judiciais: “A administração tributária, embora podendo muito, não pode tudo”, ou seja, mesmo para a administração tributária, mesmo para a quem arrecada tributos, há limites constitucionais intransponíveis.

Marina Coelho Araújo é advogada criminalista em São Paulo, doutora em Direito Penal pela USP e professora do Insper Direito.

Revista Consultor Jurídico, 11 de abril de 2016, 8h57
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