16/06/2016
Contas à Vista - Do Estado fiscal ao Estado endividado na sociedade desejante


Contas à Vista - Do Estado fiscal ao Estado endividado na sociedade desejante.

14 de junho de 2016, 8h00

Por Fernando Facury Scaff

A expressão Estado endividado foi utilizada por Wolfgang Streeck (não confundir com Lenio Streck, competente colunista da ConJur) em seu livro Tempo Comprado (Coimbra: Conjuntura Actual Editora, 2013), no qual faz uma instigante análise sobre a passagem do modelo de financiamento do Estado por tributos para o sistema de financiamento por meio de endividamento. É uma proposta teórica interessante, pois trata de dois diferentes institutos de Direito Financeiro: o da arrecadação tributária e o da arrecadação por meio de empréstimos públicos, sendo que este gera uma contrapartida de pagamento futuro, desdobrado em principal (pagamento do montante emprestado) e de seu custo (pagamento dos juros e demais encargos da dívida).

A ideia básica decorre do esgotamento da população em aceitar aumento da carga tributária, que no Brasil encontra-se por volta dos 35%. Logo, não existe mais suporte político para o crescimento da massa de tributos, apenas para eventuais ajustes dentro de cada incidência tributária, a fim de implementar a seletividade ou a indução fiscal.

O Estado é uma das mais fantásticas invenções humanas. Dentre outros, cumpre um papel distributivo, pois arrecada de todos para gastar com alguns por meio de políticas públicas destinadas a cumprir aquilo que o ordenamento jurídico estabelece como diretriz para uma dada sociedade. Todos sabemos que o tributo, em suas diferentes modalidades, é o montante que nos é cobrado para sustentar os serviços públicos que o Estado deve prestar à sua população.

Há quem afirme que, por meio do pagamento de tributos, o homem saiu de sua condição de servo e se transformou em cidadão. Antes, haveria um Estado patrimonial, em que o homem não possuía liberdade, sendo um servo da gleba, vinculado à terra que cultivava para seu amo, dono e senhor. O pagamento das obrigações (corveias e talhas) era feito em trabalho ou em produtos, não havendo nenhuma autonomia ou reconhecimento de direitos entre as partes envolvidas, apenas subordinação e subjugação de um homem pelo outro, fruto do sistema econômico estratificado existente. Um pagava porque era de um status inferior, e o outro recebia porque era de um status superior. Não havia nenhuma relação jurídica que obrigasse o uso desses recursos em prol do bem de todos, ou que se caracterizasse como uma fórmula de reconhecimento de autonomia pessoal daqueles que pagavam. As relações sociais eram assim “porque sempre haviam sido desse jeito”. Os homens, em qualquer posição que estivessem nesse contexto, não conseguiam se ver de outro modo que não fosse aquele. O Estado era o rei, como na célebre frase de Luiz XIV, avô do guilhotinado Luiz XVI — o que bem demonstra a mudança que iria ocorrer. E, como rei, recebia recursos pagos por seus vassalos, justamente por serem vassalos, e ele ser seu soberano.

Após várias revoluções burguesas em que este segmento social se insurgiu contra o estado de coisas acima brevemente esboçado, foi sendo paulatinamente criado um sistema em que as pessoas pagariam um valor em dinheiro, de forma periódica, desde que tivesse por substrato uma situação que revelasse capacidade econômica para pagamento, e, suprema necessidade, essa obrigação de pagar fosse determinada pelo Parlamento — que supostamente seria eleito e representaria todo o povo. Essa fórmula revolucionária foi o tributo, que apartou o patrimônio do rei daquele que seria o patrimônio do Estado. Surge daí o Estado fiscal, no qual a figura do tributo aparece como o preço da civilização. Mediante o recebimento de tributos, que todas as pessoas devem pagar, o Estado se obriga a prestar serviços públicos em prol da sociedade. Dessa maneira, ultrapassa-se a fase histórica anterior, surgindo direitos e deveres recíprocos entre as partes envolvidas.

A estratégia então vigente era que as receitas arrecadadas em um dado período fossem suficientes para cobrir as despesas necessárias dentro do período correspondente, havendo assim um orçamento equilibrado. Dessa forma, cada Estado deveria viver com o montante que tivesse sido autorizado a arrecadar de tributos por parte de seus cidadãos.

Claro que remanesciam problemas, pois uns pagavam mais do que outros, e, muitas vezes, se constatava que existiam aqueles que nada pagavam, muito embora tivessem expressivos signos de riqueza que admitiriam o suporte de carga tributária. E, mais ainda, as receitas públicas administradas pelos governos nem sempre focavam no interesse de toda a sociedade, sendo mais frequente o foco nos interesses do segmento burguês na sociedade, que, afinal, fez as revoluções que desembocaram nesse modelo de Estado. Não estava na pauta de análise desse Estado a redução das desigualdades sociais, pois servia muito mais como suporte para o desenvolvimento de relações econômicas desiguais que eram mantidas e se potencializavam. O Estado, nessas situações, se revelava muito mais um fiador da manutenção das desigualdades que um instrumento para sua ultrapassagem.

Desde meados do século XX, a dinâmica do Estado fiscal foi acelerada. Surgiu no pós-guerra uma sociedade de consumo, espetacularizada, onde a produção em massa de bens e serviços e o desenvolvimento de mecanismos de marketing geravam cada mais um desejo de consumo no seio da sociedade, como condição de bem-estar. Tornou-se mais importante ter bens do que ser uma pessoa com autonomia e independência. Aliás, em muitos casos, a exteriorização da posse desses bens se tornou mais importante do que sua pertença — ter mais carros, mais roupas, mais computadores de última geração, mais objetos suntuários, mais tudo. Isso impactou fortemente as necessidades públicas, pois onde havia um patamar mínimo de prestações civilizatórias a serem concedidas pelo Estado passou-se a exigir cada vez mais suporte para essa disputa inglória entre pessoas, empresas, sociedades e países.

Ocorre que essa sociedade desejante tem um foco absolutamente individualizado, onde não se reconhece o outro, logo, a ideia de se pensar a sociedade como um todo, onde agimos e interagimos coletivamente, foi deixada de lado. O desejo é algo individual, e implica na busca de se ter tudo que se quer, a qualquer tempo e hora. Não há cunho social no desejo, apenas o “eu quero para mim”.

Essa sociedade desejante, fortemente individualizada, quer obter prestações civilizacionais de forma cada vez mais rápida, porém não tolera a ideia de aumentar a carga tributária. Mais estradas, escolas, hospitais, transporte público, lazer, teatros, segurança..., é preciso ter tudo isso agora, já, para que os atuais membros dessa sociedade gozem desse novo patamar de vida, não sendo possível aguardar a formação de poupança pública para fazer frente a tantos desejos. Aumentar a poupança da sociedade para satisfazer a esse novo patamar de desejos implicaria na modificação de hábitos econômicos, sendo uma tarefa de longo prazo. Como proceder a isso de forma acelerada e para todos, e não só para alguns?

Uma das fórmulas encontradas foi a da intensificação do endividamento público, por meio do qual se obtém recursos agora, para pagamento futuro. É em razão dessa troca entre gasto público atual, mediante recursos hauridos por empréstimos, e o comprometimento de renda futura para seu pagamento, que se costuma dizer que empréstimos são tributos antecipados, ou seja, comprometem os tributos que serão arrecadados pelas futuras gerações para pagamento dos gastos feitos pela atual geração. Isso ocorreu em todos os países da chamada civilização ocidental.

Surge daí o Estado endividado, que nos leva ao debate sobre sustentabilidade orçamentária, que congrega não apenas as usuais categorias de receita e gasto públicos, acrescendo a do crédito público e o debate sobre a qualidade do gasto.

O fato é que o capital não tem fronteiras, e o Estado endividado é uma realidade nos dias que correm. A crise europeia relatada por Avelãs Nunes em magnífica obra (Quo Vadis, Europa), publicada pela editora Contracorrente (que é fruto do empreendedorismo do Rafael Valim), e a crise brasileira desta segunda década do século XXI demonstram que não se trata de um fenômeno isolado. Trata-se da decadência de um modelo adotado pelos países ocidentais, baseado no financiamento do Estado por meio do capital financeiro, que submete as decisões de Estado à sua lógica e sistema de apropriação de excedentes. O Estado vive para atender aos desejos da população atual e, para tanto, se endivida, sendo obrigado a pagar juros e a rolar sua dívida infinitamente, o que comprime os demais gastos necessários para o bem-estar de toda a sociedade, e as disponibilidades financeiras das gerações futuras, que serão comprimidas para pagamento do endividamento atual.

Se antes, durante o Estado patrimonial, a crise era decorrente de um déficit de cidadania, e durante o Estado fiscal a crise era de legitimidade entre o que era arrecadado de todos e usado em prol de alguns, agora, durante esta fase desejante da sociedade atual, o Estado endividado gera crises pela apropriação dos excedentes, subordinando até mesmo o capitalismo industrial, o comercial e o agrário às determinações do capitalismo financeiro — além dos trabalhadores, claro. Sujeitamo-nos, todos, ao papel de pagantes de juros das promessas civilizatórias de uma sociedade desejante.

Os desequilíbrios socioeconômicos permanecem, dentro e fora das fronteiras nacionais, em face da acumulação histórica do capital e de sua completa globalização. Os fatos se aceleram e todos pagamos em favor de alguns poucos. Isso ocorre mesmo na União Europeia, que se pretende uma constelação pós-nacional, mas que se configura em uma sociedade sem povo nem cultura comuns — qual a identidade entre um cidadão português e um cidadão alemão, além de terem nascido no mesmo continente, aglomerado geopolítico? Parece claro que não existe um povo europeu, o que bem demonstra o déficit democrático das tentativas de coordenação política em torno de uma Constituição europeia, como ensina Avelãs Nunes na referida obra. Sendo assim, em prol de quem está sendo construída esta estrutura política? A resposta dada por Avelãs revela o capitalismo financeiro como o grande artífice desse movimento.

Além da estrita análise europeia, isso pode ser perquirido ao longo do globo em diversos graus. A esperança de uma sociedade mais livre, justa e solidária se dissolve no ar que nos sufoca, transformando-se em uma miragem no deserto.

Antes, durante o Estado patrimonial, o enfeudamento se dava entre pessoas, suserano e vassalo. Hoje, no Estado endividado, o enfeudamento ocorre entre países, subordinando os mais pobres aos mais ricos, sob o pálio do capital financeiro, retirando a essência de sua soberania. Se antes haviam pessoas de 1ª e de 2ª classe, hoje existem países de 1ª e de 2ª classe. A dominação não mais ocorre de forma direta, entre pessoas, mas de maneira difusa, entre a população de diferentes países — os que permanecerão usufruindo as benesses de um Estado social às custas daqueles que terão que sair pela porta dos fundos desse sistema. Em vez de redimir o homem, o sistema atual agrava o problema, com a minoria subjugando a maioria das populações, que só terão a miragem como válvula de escape para alcançar as promessas civilizatórias da modernidade.

Uma alternativa para escapar dessa cilada seria transformar os desejos de nossa sociedade, de imediatos para futuros, de tal modo a permitir que venham a ser alcançados pela futura geração, que já está gestada e se caracteriza por nossos filhos e netos, e não para nós mesmos. A isso se poderia chamar de solidariedade intergeracional, e poderia diminuir o ritmo do endividamento.

Porém, se trata de uma alternativa ideal, que não serve para todas as sociedades, em especial para sociedades marcadas pela desigualdade, como a brasileira, que tem dentre seus principais problemas a falta de aproveitamento social das receitas públicas, sendo mais comum seu aproveitamento individualizado. Nosso gasto público, efetivo ou decorrente de renúncias fiscais, contempla muito mais benefícios individuais ou de categorias econômicas e muito menos benefícios em prol de toda a sociedade. Aqui, a mudança de foco desejante não deve ser apenas intergeracional, mas contemporâneo, em prol da redução das desigualdades atualmente presentes na sociedade. O redirecionamento do gasto público e do sistema de financiamento do Estado — seja por tributos, seja pelo endividamento —, deve ter por diretriz a redução das desigualdades sociais contemporâneas, e não apenas as futuras.

Intui-se que o grau de desigualdade social pode gerar soluções diferentes. Nas sociedades menos desiguais, o foco pode ser por meio de soluções intergeracionais; nas sociedades mais desiguais, como a brasileira, o redirecionamento do gasto público deve ser mais imediato, buscando urgente redução das necessidades sociais. Para quem tem carência do que é básico, não há futuro a esperar, restando muito a desejar.

É necessário repensar nosso modelo, pois estamos em vias de naufragar, independente de quem seja o comandante desse transatlântico chamado Brasil.

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Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2016, 8h00
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