07/04/2017
Julgamentos ideológicos do Carf e a certeza da insegurança jurídica

Julgamentos ideológicos do Carf e a certeza da insegurança jurídica

06/04/2017

Por Roberto Duque Estrada

“Em síntese, não existe sempre um
imposto (there is not always a tax).
Enquanto tributos forem exigidos,
haverá negócios em que o imposto
será mais oneroso em determinada
modalidade de celebração do
que outra, ou em que aquela
modalidade estará acima da
dúvida que ensombra esta.”
(Antônio Roberto Sampaio Dória)

Nos dias 30 e 31 de março, foi organizado, pela Comissão Especial de Assuntos Tributários (Ceat) da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro, um dos eventos mais importantes para os operadores do Direito Tributário no país: o seminário “Questões controvertidas no Carf”, com especial ênfase na análise da jurisprudência daquele tribunal administrativo, competente para o julgamento, em grau de recurso, dos processos administrativos em matéria de tributos federais.
O evento, coordenado pelo colega Maurício Faro, presidente do Ceat, advogado militante e ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), contou com a presença ilustre de conselheiros atuais e passados daquele órgão, além de advogados e procuradores da Fazenda Nacional que junto ao mesmo exercem seu ofício.
O evento teve o mérito de instigar um profundo debate a respeito dos rumos que as decisões do Carf têm seguido no momento atual e os cuidados que devem ser tomados pelos contribuintes na gestão dos seus negócios privados, haja vista estarem predominando, especialmente no âmbito da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), julgamentos de cariz ideológico, que, invocando princípios constitucionais dos mais variados, tentam — e conseguem, muitas vezes pelo voto de qualidade — fazer prevalecer lançamentos que contestam o direito de auto-organização dos particulares.
A palestra do procurador da Fazenda Nacional Marco Aurélio Zortea Marques, intitulada “A jurisprudência do Carf e a relativização do princípio da legalidade tributária”, foi muito feliz em apontar o atual confronto ideológico entre concepções doutrinárias ditas liberais, que enxergam no princípio da legalidade uma garantia constitucional dos particulares, que proíbe a tributação para além das fronteiras da tipicidade, daquelas, ditas sociais, que relativizam a tipicidade, permitindo que a lei alcance não só o que prevê, mas “(…) também aquilo que resulta da sua conjugação positiva com o princípio da capacidade contributiva”[1].
Como bem apontado na palestra, a raiz da diferença ideológica está na concepção do princípio da capacidade contributiva: para o pensamento dito liberal, referido princípio tem uma função negativa ou proibitiva; para o pensamento dito social, uma eficácia positiva.
Alberto Xavier, citado na palestra como exemplo de jurista de pensamento liberal, ensina:
Por outras palavras: o princípio da capacidade contributiva é um comando constitucional ao legislador infraconstitucional, para que, “se possível”, dê tratamento igualitário a idênticas manifestações de capacidade econômica, através da lei. Leia-se de novo o §1º do art. 145 da Constituição: “sempre que possível, os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”. O princípio respeita ao caráter e à graduação dos impostos, isto é, aos tipos tributários desenhados pela lei, pelo que o comando nela contido só pode ser dado ao legislador, único órgão que pode imprimir caráter e graduar os tributos. O mesmo se diga do princípio da igualdade: “é vedado instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente” (art. 150, II) é ordem dada a quem tem competência para instituir os impostos, que é necessariamente o legislador. (….)
Os princípios da igualdade e da capacidade contributiva desempenham assim uma função negativa ou proibitiva: vedam ao Poder Legislativo uma tributação alheia à capacidade contributiva, bem como uma tributação discriminatória, arbitrária ou desrazoável “entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente” de idênticas manifestações de capacidade contributiva. Mas esses mesmos princípios não têm uma função positiva ou preceptiva de ordenar ao legislador a tributação de toda e qualquer manifestação de capacidade contributiva.
Esta ordem simplesmente não existe na Constituição[2].
A doutrina dita social, cujo principal expoente, igualmente citado na palestra, é Marco Aurélio Greco, tem inspirado os autos de infração dirigidos contra os planejamentos tributários adotados pelos particulares para obter economia fiscal. Para referida doutrina, o direito de auto-organizar e contratar estaria limitado pela sua função social, que não pode colidir com um dever de solidariedade social de contribuir para as despesas públicas de harmonia com sua capacidade contributiva. Essa colisão, e, portanto, o abuso, ocorrerá se e quando o particular exercer a sua liberdade com a finalidade exclusiva ou preponderante de se furtar à aplicação de norma tributária mediante a opção por caminho alternativo não abrangido por aquela norma, mas revelador de idêntica capacidade contributiva.
Essa ideologia socializante tem servido para suportar a manutenção de exigências tributárias lançadas sobre operações legítimas, que buscaram a obtenção de economia de tributos. Exemplo recente de julgamento fundamentado nessa ideologia é o Acórdão 9101-002.429 da 1ª Turma da CSRF, que considerou abusiva e simulada uma operação de reorganização societária que envolveu a cisão parcial de uma empresa (Transpinho) com a versão, para a formação do capital social de outra empresa (Saiqui), de um conjunto de bens imóveis (terrenos e florestas). Vale observar, conforme se lê no relatório, que: a) a cisão ocorreu no ano de 2005; b) em 2006, a Transpinho tributou seus rendimentos sob a sistemática do lucro presumido e, em 2008 (ano da glosa), estava sujeita ao lucro real; e c) a Saiqui sempre esteve sujeita ao lucro presumido. O abuso punível pela tributação estaria no fato de a Saiqui, por ser optante pelo lucro presumido, ter suportado tributo menor sobre a venda dos terrenos feita em 2008, que aquele que teria sido pago pela Transpinho, caso tivesse sido ela a vendedora.
Os fundamentos adotados pelo voto vencedor para manter a exigência fiscal se baseiam num rol de disposições da Constituição Federal (preâmbulo, artigo 1º, IV, artigo 3º, I e III, artigo 5º, XXIII e XXIV, artigo 170, caput e incisos III e VII, artigo 184, artigo 193 e artigo 195) e do novo Código Civil (artigo 187, artigo 421, artigo 1.228, parágrafos 1º e 3º e artigo 2.035), que, em sua exegese, teriam o efeito de limitar o direito do contribuinte de livremente organizar seus negócios.
De acordo com essa dita concepção social do Direito Tributário, e chegando a invocar o preâmbulo da Constituição quando dispõe sobre “direitos sociais e individuais”, “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” e “harmonia social”, o relator considerou que aspectos fáticos do caso concreto revelariam uma falta de substância da Saiqui, legitimadora da tributação, a saber: a) sede no mesmo terreno da Transpinho; b) mesmo número de telefone; c) mesmo endereço eletrônico; d) mesmo responsável pelo preenchimento das DIPJs; e) inexistência de empregados em 2006 e existência de dois empregados em 2008.
O acórdão, na sua ementa, sintetiza o pensamento da corrente vencedora:
Não se pode admitir, à luz dos princípios constitucionais e legais — entre eles os da função social da propriedade e do contrato e da conformidade da ordem econômica aos ditames da justiça social —, que, a prática de operações de reorganização societária, seja aceita para fins tributários, pelo só fato e que há, do ponto de vista formal, lisura per se dos atos quando analisados individualmente, ainda que sem propósito negocial (grifos nossos).
E não bastasse a tributação de um evento que não ocorreu — a venda de imóveis pela Transpinho —, o acórdão chancelou a acusação de simulação dolosa com o objetivo exclusivo de economia tributária, mantendo a multa agravada de 150%.
Esse acórdão estarreceu os alunos da Academia Tributária em Florianópolis, presidida pela professora Marta Neves, onde tive a satisfação de lecionar, junto com o professor Alberto de Medeiros, em curso de extensão, sobre o tema “Planejamento tributário e as novas perspectivas do CARF para o IR e a CSLL”. O precedente foi intensamente debatido, e os alunos ficaram assustados com a insegurança jurídica a que o empresário está exposto. Quem decide o que é legítimo? Quem aprova ou não os efeitos tributários de uma operação? Quem dirá quantos anos tenho que esperar para vender um ativo transferido em uma cisão para não ser acusado da prática de simulação dolosa? Há ou não o direito de opção pelo lucro presumido ou, uma vez lucro real, sempre lucro real? Ao que parece, nesse Estado social preconizado pela jurisprudência majoritária da CSRF, serão os fiscais “comissários”, novos apparatchiks, que terão o poder de dizer o que podem e como devem fazer os contribuintes, em frontal violação às liberdades econômicas asseguradas pela Constituição.
O alento que resta aos contribuintes é saber que ainda existem votos de altíssima qualidade, que tentam reverter essa assustadora insegurança decorrente da entrega a agentes fiscais do direito de dizer o direito dos particulares, e não de simplesmente aplicar a lei aos casos concretos.
Referimo-nos especialmente à declaração de voto do conselheiro Luís Flavio Neto no acórdão do caso em exame, que é um exemplo de elegância, sensatez, equilíbrio e, sobretudo, elevada substância jurídica. A declaração de voto merece ser amplamente divulgada e estudada pelos interessados na matéria, já que ela não se confina às fronteiras do caso concreto, antes discorre de forma didática e erudita, sobre o tema da reorganização patrimonial por meio de pessoa jurídica imobiliária.
Escapa aos limites desta coluna uma exposição detalhada do voto em questão, mas pode se dizer que o mesmo começa por identificar que um dos principais efeitos das reorganizações em questão, no plano tributário, é o de permitir o exercício do direito de opção fiscal pelo regime de tributação do lucro presumido, por vezes menos oneroso que o do lucro real.
Forte nas lições de Tercio Sampaio Ferraz Junior, o voto ensina que o princípio da livre iniciativa, erigido como fundamento da ordem econômica no artigo 170 da CF/88, contém mandamento para que o Estado atue de forma negativa, no sentido de não interferir na expansão da criatividade do indivíduo e, ainda, positiva, de atuação para valorização do trabalho humano. E, apoiado em Tulio Rosembuj, explica que “a liberdade da empresa não se esgota no exercício da liberdade contratual, no exercício do direito de propriedade ou na atividade de produção e bens de terceiros no mercado livre: trata-se da garantia de poder decidir como combinar fatores de produção e de utilizar de riqueza para produzir nova riqueza”.
A declaração de voto assim expõe suas conclusões:
Diante do cenário jurídico atinente à matéria sob julgamento, conclui-se que:
– em vista das liberdades econômicas o contribuinte brasileiro goza do direito de reestruturar a exploração do seu capital da forma mais eficiente, inclusive sob a perspectiva fiscal, salvo intervenção clara do legislador;
– não há qualquer norma societária ou tributária que obrigue a concentração do universo patrimonial de um indivíduo ou de uma sociedade em uma única pessoa jurídica, com a sujeição dos rendimentos consolidados à sistemática do lucro real, por ser este mais oneroso;
– a adoção da sistemática do lucro presumido depende exclusivamente do cumprimento do binômio: volume de receitas brutas obtidas pela pessoa jurídica e atividade que não obrigada ao lucro real;
– não há qualquer norma específica de intolerância ao planejamento tributário em questão (SAAR), que impeça pessoas jurídicas resultantes de reestruturação societária optarem pela sistemática do lucro presumido;
– trata-se de decisão consciente do legislador, que calibrou, com as ferramentas tributárias, as liberdades econômicas e os mecanismos de incremento do desenvolvimento econômico;
– para fins fiscais, devem ser reconhecidos os efeitos da efetiva reorganização patrimonial por meio de pessoa jurídica imobiliária, tratando-se de planejamento tributário plenamente oponível ao fisco;
– não se requer motivos extratributários (“propósito negocial”) para a constituição de pessoa jurídica imobiliária com integralização de bens imóveis ao seu capital social;
– não se requer motivos extratributários (“propósito negocial”) para que a pessoa jurídica imobiliária, resultante de reorganização patrimonial, se legitime à opção pelo lucro presumido.
A declaração de voto não se furtou a examinar as acusações de simulação e demonstrou não serem juridicamente pertinentes os critérios utilizados para fundamentar a decisão de que os atos praticados pelos contribuintes seriam ilegítimos e sujeitos à multa qualificada de 150%, assim rechaçando a postura adotada pela autuação fiscal:
Conforme fundamentos expostos nos tópicos acima, a Constituição Federal não permite que a administração fiscal atue como se possuísse ingerência na condução das atividades econômica empreendidas, substituindo as decisões do indivíduo, para fins tributários, por outras que lhe pareçam arbitrariamente mais adequadas, com arbitrário incremento do ônus tributário (grifos nossos).
A ingerência nos negócios privados tem sido a tônica das autuações contra os planejamentos fiscais. Admitir tamanha ingerência sem a mediação da lei é abrir as portas para o arbítrio. A história nos ensina que os governos totalitários foram defensores das mesmas doutrinas ora ditas sociais de interpretação das leis tributárias, com vistas a fazer prevalecer a vontade arrecadatória do Estado. Como recorda Alberto Xavier, “não admira, pois, que o regime nacional-socialista, que abominava a liberdade individual e glorificava os poderes de um Estado baseado no sangue e na raça, tenha acolhido com júbilo as aludidas restrições ao princípio da legalidade na Steueranpassungsgesetz (lei de adaptação fiscal) de 1934, tido como empecilho liberal e pequeno burguês à plena expansão do Führerprinzip no terreno dos tributos”[3].
A prevalecer julgamentos ideológicos, que confirmam a ingerência da administração fiscal nos negócios realizados pelos particulares sem qualquer fundamentação direta na lei, a única certeza que restará ao contribuinte será a certeza da insegurança jurídica.
***
Recebemos com imenso pesar a notícia da morte, no último sábado, do professor Aires Fernandino Barreto: mestre de todos nós, um dos grandes nomes do Direito Tributário nacional, uma das maiores autoridades no domínio do ISS. Fica aqui um abraço fraternal ao seu filho, brilhante advogado e professor Paulo Ayres Barreto, e nossos sinceros sentimentos aos seus demais familiares.

[1] Cfr. Marco Aurélio Greco, Planejamento Fiscal e Interpretação da Lei Tributária, São Paulo, 1998, p. 45.
[2] Cfr. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, Ed. Dialética, São Paulo, 2001, págs. 128, 129 e 130.
[3] Cfr. op. cit., p. 46
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Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

ConJur
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